Concentração e distração: contradições da nossa época

 Uma das grandes contradições do nosso tempo deslocou-se do binómio controlo/disciplina para se expressar na dicotomia concentração/distração. A concentração continua a ser imperativa nos locais de trabalho. E é tanto mais exigida concentração quanto mais hierarquizada e disciplinar é a relação de produção. Neste sentido a sociedade da disciplina é a sociedade da concentração. Tudo focado nos objetivos de produção; tudo a realizar a sua tarefa de acordo com o estipulado e previsto no corpo da divisão social do trabalho que se espelha tanto na macroeconomia como na microeconomia; tanto na economia dos Estados-nação quanto na organização económica interna das empresas. Mesmo os trabalhadores mais criativos e menos sujeitos à obsessão disciplinar devem estar concentrados nos objetivos de produção que lhes cabe cumprir, na sua tarefa ou até “missão”. Mas este imperativo incondicional de concentração, atuando de forma inflexível ao nível das instituições que organizam o trabalho assalariado, é contraditório com um modo de produção capitalista cada mais orientado para a produção da distração, para a dispersão da atenção. A competição pela nossa atenção enquanto consumidores é de tal forma intensa que não há maneira de prendermos a atenção por muito tempo. Por outra parte, formas hegemónicas de relacionamento social como as redes sociais vivem – realizam o seu lucro -- justamente da capacidade de dispersão da atenção, sendo o chamado scrolling um produto, um sintoma ou símbolo desta economia da distração. Não por acaso que uma das grandes batalhas nas principais instituições da economia burguesa, como a família e as empresas, se trava no campo do conflito entre concentração e distração. A cruzada contra a presença dos smartphones em trabalhos que exigem foco é uma constante em ambientes laborais mais disciplinares. A tal ponto que o uso de telemóvel em horário laboral quando esse uso é proibido sujeita o trabalhador a despedimento por justa causa. Na instituição-família esta luta pela concentração é também permanente, nomeadamente para os pais que procuram disciplinar os filhos em relação ao uso compulsivo das tecnologias digitais materializadas em todo o tipo de gadgets. Mas a demanda pela concentração apresenta-se como negatividade em relação a uma sociedade em que é a distração que impera, que toma a hegemonia. A concentração está sempre em desvantagem e a distração não é um mero fator acidental na economia, pelo contrário, a distração é a forma de subjetivação inerente a um modo de produção específico que se carateriza não só pela dispersão dos fatores produtivos como dos processos de reprodução do capital. Dentro da ampla fábrica da produção (que abrange todos os sectores da economia: primário, secundário e terciário) exige-se concentração, mas na “fábrica do social”, na indústria da subjetivação social, o que se procura é a distração.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O salto de fé exigido ao católico pelo marxista

A ideologia como confissão da impotência política