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A mostrar mensagens de outubro, 2023

Um caso particular de infidelidade

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  Podíamos arrumar a questão da infidelidade dizendo que infidelidade é infidelidade independentemente do seu modo e do seu porquê, mas a forma como Robert era ou foi infiel a Medley parece-nos merecer uma atenção particular. Como diria Tolstoi: todos os casais que são fiéis se parecem uns com os outros, mas cada casal infiel é infiel à sua maneira. Tudo para o nosso casal começou com uma inocente e legítima troca de mensagens num chat de uma célebre rede social. E quem começara nem sequer fora Robert, nem essa singela troca de mensagens constituía qualquer tipo de assédio ou outra forma retorcida e perversa de relacionamento. Aliás, Robert demorou a responder à inesperada mensagem pelo facto de a sua interlocutora lhe ser uma completa estranha e escrever num português absolutamente medonho e analfabeto. Robert era um ser de pruridos múltiplos que conservava ainda alguma dignidade... Talvez na noite em que lhe respondera estivesse sozinho ou se sentisse vagamente triste e desamparad

Amor platónico

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  Com Medley tinha aprendido a humildade. Sempre se sentira especial, no topo do mundo, uma verdadeira exceção; e como quando conhecera Medley, contactara de perto com ela, tudo subitamente mudara… Sempre vivera como se tivesse uma missão a cumprir; como se fosse o centro do mundo; como se os deuses o tivessem privilegiado e escolhido; como se a Robert estivessem destinados grandes feitos e glórias; e como tudo isso, toda essa arrogância e narcisismo, se tornou vão, mesquinho e minúsculo aos pés de Medley! Com Medley, apesar ou contra a sua carência de beleza física, tivera o seu primeiro e grande amor platónico. Estremecia quando ela estava por perto; desfazia-se quando ela lhe tocava; vivia para a agradar como se sempre estivesse em falta para com ela. Pensava que uma pessoa com aquela natureza merecia toda a sua dedicação, todo o seu esforço e reconhecimento. (Alguma vez conviveram com alguém a que sentimos que devemos tudo pelo simples facto de existirem espalhando o seu carisma

Mãe só há uma

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Trucidava-se por ter desejado a morte de sua mãe. Na verdade essa expetativa não o largava mesmo quando verdadeiramente já não desejava a morte da sua mãe. Na altura em que desejava a morte da sua mãe estava atafulhado em dívidas; desesperado pela falta de perspetiva; falido e sem emprego; sustentando-se a si e à sua mãe; e, claro, sem ter conhecido ainda a sua futura Medley. É evidente que nada podia justificar esse pecado capital do pensamento que é o desejar a morte de alguém, e logo de sua mãe, daquela que mais de o ter parido o criou até ser um homem (seja lá o que isso for) e conseguir pagar as suas próprias contas. E bem que queria livrar-se desses pensamentos tenebrosos mas eles circundavam-no e persistiam como se zumbissem permanentemente à volta dos seus ouvidos. Por mais que os enxotasse procurando desviar o pensamento para outros assuntos a ideia de que só queria ver a sua mãe morte retornava como que obcessivamente. E imaginava o dia da morte da sua mãe; se conseguiria c

Um Hamlet na vida

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  Robert podia muito bem ser um personagem shakespeariano, uma espécie de Hamlet. Cheio de talento mas hesitante; seguro dos seus princípios e valores morais mas realmente cobarde; alguém com tudo para dar certo mas que por alguma razão nunca dava certo. Devido à sua falta de confiança, às suas dúvidas permanentes, à incapacidade de levar um projeto até ao fim, de ser convicto ao ponto de ser dogmático, por tudo isto Robert preferia ser comandado do que comandar, ser governado do que governar. A simples expetativa de vir a ser protagonista em um qualquer assunto a que irrefletidamente tomara iniciativa ou que coincidia com os seus dotes amedrontava-o. Principiava a suar frio, enrubescia, começava dis cretamente a beliscar-se ou a contorcer nervosamente os dedos dos pés. A sua vida podia resumir-se à fuga permanente do protagonismo; de assumir a dianteira. Talvez houvesse poucas coisas que mais temesse na vida do que o julgamento dos outros e desse jugo não se conseguia Robert liberta
  Nem sempre nos entendemos nesta confusão de nomes Se olhamos de perto tornamo-nos baços e indistintos Mas se afastamos demasiado o olhar perdemo-nos na multidão Cada um de nós é a encarnação de um milagre, um milagre que caminha Que diz coisas estúpidas, comete pequenos e grandes delitos Paga impostos E ao mesmo tempo cada um de nós é um anónimo absoluto Apenas mais um entre a mole incontável de uns Somando-se nessa cadeia interminável a que demos o trágico nome de humanidade Em certo sentido todos, mas mesmo todos, resvalamos pela mesma colina À minha frente eis que rebolam os do passado E atrás de mim já sinto a sôfrega e ingénua passada dos vindouros Nem sempre a política dos nomes atua com precisão E isso é capaz de gerar os maiores dos equívocos Nomes que nos condenam por crimes que não cometemos E outros que nos absolvem por gestos que mereciam o maior dos repúdios Como é violenta e sádica a luta por um só nome Capaz de nos salvar da força de g
Passamos a vida inteira agarrados à cabeça Envoltos em pensamentos Perguntas que não cessam, inquietações E perguntas para as quais finamos sem ter a mais pálida resposta Com tanta perturbação, tantos pensamentos e questões A nos perseguir pela existência fora Não sei como não colapsamos Como insistimos nos nossos sonhos E continuamos a procurar fazer as coisas Tal como as fizemos até aqui A cumprir o nosso dever A levar a vida direito A verdade é que mesmo quando o homem ou a mulher Caminham sós Nunca caminham verdadeiramente sozinhos Há sempre demasiadas palavras à sua volta Demasiado ruído e excesso de mundo Tanto que o mais provável é que os humanos definhem De cansaço Como essas árvores centenárias dobradas pelo permanente fustigar do vento.

O pequeno Gatsby

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Irritava solenemente a Robert o pedantismo de Medley. O modo como esta procurava a todo o custo introduzi-lo naquilo que ousava chamar de melhores meios . Detestava toda aquela gente emproada que conseguia introduzir citações avulsas e descabidas em conversas francamente insípidas e sem substância. Detestava todos os amigos e amigas de Medley, toda a sua educação primorosa, o seu sentido de humor classista e confrangedor, as suas peles brancas quase translúcidas. Detestava a forma como se pavoneavam pelas exposições; como timidamente batiam as palmas no teatro ou na ópera; como procuravam apenas se relacionar com aqueles que consideravam da sua estirpe. Da parte de Robert sempre achou ao menos mais honestos e chãos as pessoas comuns, os plebeus como ele próprio. Apesar da tacanhez de espírito, da ignorância, da falta de tato e brejeirice destas almas populares. Por outro lado, ficava intimidado na presença dessa gente que na sua cabeça já assumia como pertencendo às classes superiore
  Pensa na voracidade da vida Em como ela transforma qualquer corpo Mesmo o para nós mais íntimo Num espetro Em como ela esfuma qualquer paisagem Como a diferença entre a realidade e a ficção Se esbate Como o real entra pelo sono adentro E o sono pela vigília adentro E a matéria se decompõe Até dela só restar uma volátil substância gasosa Pensa em como nós mesmos pouco a pouco Nos tornamos invisíveis O quanto nos deixamos de reconhecer E nos surpreender pelas imagens da infância Em como com o passar dos anos nos estranhamos E tudo à nossa volta e dentro de nós Se esfuma, se esvai E o mundo inteiro se transforma a nossos olhos Nessa dissipação permanente E o que tomávamos por certo poucos instantes atrás Pertence agora à ordem do mitológico, do obscuro Somos uns para os outros fantasmas deambulantes.  

O trabalho ou a vida

É insofismável a sensação de liberdade recuperada finda a hora de trabalho. Não sendo por acaso que alguns se refiram ao trabalho, salvo as devidas distâncias, como a uma prisão. Sendo igualmente certo que muitos nunca se livram completamente do trabalho, seja porque este lhes atormenta continuamente os pensamentos, seja por não terem propriamente um horário fixo. Por outro lado, livrarmo-nos do trabalho, nem que seja por umas horas, as horas de descanso, não significa sermos automaticamente livres, outras formas de exploração e de alienação se sucedem. Mas a sensação de liberdade e de alívio quando deixamos atrás de nós a porta do nosso emprego é insofismável. Libertarmo-nos do seu jugo, do jugo do trabalho com as suas relações de exploração e de poder, com as suas hierarquias, com a sua submissão à ética do dever…, é libertarmo-nos de uma parte substancial da nossa vida que continuamente nos aliena e nos afasta de uma existência livre e entre iguais – por mais que nos procurem conven

Medley

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  Nunca tinha conhecido ninguém assim. Praticamente durante toda a sua vida apenas tinha conhecido a malícia nos homens. As suas faltas, o seu rancor, o seu ressentimento e ressabiamento. Talvez por isso crescera a aprender a desconfiar dos homens; a ver nas relações entre as pessoas um campo de batalha que no limite poderia conduzir à morte de algum ou de todos os opositores. Mas ela era diferente, muito diferente do que tinha testemunhado até a ter conhecido. Ela era em tudo superior a ele. Em predisposição moral, caráter e inteligência. Antes de tudo, ela era mais livre e menos, muito menos, complicada do que ele. Curiosamente não lhe guardava um pingo de inveja, como tantas vezes sucedera com outras pessoas com as quais lidara. Aliás, ter conhecido Medley impôs-lhe um sentimento que até então se recusara a deixar brotar: o da sua inferioridade moral ou, pelo menos, o da sua não superioridade moral. E esse reconhecimento não o deixava amesquinhado como dantes, pelo contrário, li
 Vamos somando palavras a palavras Páginas a páginas Já não sabemos o que fazer de tamanha exuberância A todo este excesso de segunda natureza Que eco podemos surtir na floresta infinda Gostamos de pensar que poderão servir de barco Na hora do nosso naufrágio Que nos poderão salvar Talvez nos prendamos a essa réstia de esperança De que nem tudo se perca no incêndio   Que entre as brasas e as cinzas ainda consigamos Fazer sentido dos versos, unir as frases Reacender o verbo  E o leitor é esse mago indolente à lareira Que com o seu sopro  Ou com a sua tenaz revestida do oiro dos dias Pacientemente vai ateando o fogo.
É sempre assim  Estamos em casa confortavelmente sentados ao sofá  A beber cerveja sem esperar rigorosamente nada Quem sabe de roupão fumando do cachimbo  Ou envoltos nos nossos afazeres diários  A travar a enésima batalha nos nossos empregos de merda Desviando o pensamento enquanto estamos parados no trânsito Fazendo contas à vida  E de súbito o terror escancara as portas da nossa casa  Gela-nos a espinha, paralisa-nos Estabelece uma fissura insuperável  Entre aquilo que desejamos e aquilo que realmente temos  Em nenhum lugar estamos verdadeiramente seguros  Não há bunkers que nos possam proteger  Quando o inimigo público número um É também o inimigo interno número um.
 Podemos andar uma vida inteira iludidos A pensar que o grande desígnio  Reside na procura da fórmula A fórmula como a medida do sublime Dessa ideia de perfeição que nos inspira e nos motiva Da sua realização literária ou imagética E que atingida todo o sofrimento Todas as horas de dedicação ascética à beleza e à verdade  Se descobrirão subitamente redimidas E tudo finalmente se fará claro Mas não tarda a descobrirmos que a fórmula Não é um fim mas apenas um meio Que vivemos dentro de obsessões coletivas De traumas e tribos  E que não há pontos de chegada Mas apenas ressonâncias, descontinuidades, fraturas Desvios de sentido, perplexidades, silêncios, Equívocos, mal-entendidos, Metáforas de metáforas de metáforas E tudo o que fazemos é reinventar incessantemente Aquilo que na verdade é sempre o mesmo. 
 Sabemos que algo está sempre para vir Na iminência de chegar Com o seu rufar de tambores e os seus pássaros em debandada Mas não conseguimos saber exatamente o quê Ainda que muitas vezes consigamos entrever qualquer coisa Na penumbra, uma silhueta, um presságio Um exército de anjos apocalípticos em marcha Com as suas espadas sanguinolentas, os seus rostos brancos e a sua fúria demolidora O nosso temor reside neste intervalo Entre uma história que se recusa a cessar Um “movimento perpétuo” E o pavor ao novo, àquilo que está por chegar Mais ainda quando este se insinua Com a sua voracidade carnal e a sua sede de vingança Sentimos a sua presença como o bater de um coração O doloroso e angustiante arfar de um pulmão E nunca estamos realmente prontos Para o absolutamente Outro.
 Já faz séculos que andamos nesse negócio De inventar uma linguagem nova Para dizer as coisas antigas Quantas versões de fim de mundo já não teremos vivido Quantas tragédias sem par na humanidade e amores intemporais Somando a guerras devastadoras que tantas famílias separaram Colocando irmãos contra irmãos As gerações vindouras serão sempre decadentes em relação às gerações passadas No fundo as gerações por vir serão sempre um presságio do fim A civilização está irreversivelmente em colapso iminente  Quantos lamentos pela perda da idade de ouro E insistimos na procura de novas formas de dizer o mesmo Por outras formas e palavras Quem sabe nos tenhamos tornado pateticamente redundantes E o nosso ofício se resuma à liturgia Século após século, ano após ano, dia após dia, A ratificar a insofismável perda de uma linguagem sobre a verdade -- Mas qual verdade -- E a declarar a morte de algo que em nós nem nunca sequer teve vivo Nesse tempo em que não havia distinção entre aquilo que queríam

Uma conquista

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  No dia seguinte estava nas nuvens, senhor absoluto do seu reino que se estendia a não menos do que a todo o seu horizonte visual, um reino que se confundia com o seu mundo, interior e exterior. É certo que era um pouco estranho e muito vexatório ter perdido a virgindade já na casa dos trinta mas aquela manhã de triunfo e de enlevo ninguém lha tirava, era exclusivamente sua. Apesar de já adulto sentia que finalmente superara outra etapa da sua vida, não importa verdadeiramente com quem e do seu atraso. Não importa se ela, Medley, já tinha ou não um filho e a diferença de idades era de uma década. O que importa, pensava na sua cabeça, é que ao menos já não morreria virgem, ignaro das incomparáveis volúpias da heterossexualidade (no caso). Certo que não foi logo à primeira, quando precipitadamente se atirou, guloso, com a palma da mão aberta inteira, ao baixo-ventre de Medley e esta prontamente o repeliu assegurando-lhe que não era assim, que não chegavam ao primeiro ou segundo encontro
 Estamos de tal modo implicados De tal forma cúmplices As nossas mãos manchadas de crime Que não somos capazes de dar um passo em frente  Sem com isso arrastarmos amigos e inimigos atrás  Pertencemo-nos sanguineamente Membros decepados da mesma árvore da sabedoria  E simultaneamente não nos conhecemos de todo  Há quem diga que o apocalipse nos restituirá a unidade entretanto perdida  Outros que estamos condenados ao cárcere do eu Ao árido desterro do solipsismo  Entre uns e outros  Fluxos de intimidade carnal Cumplicidades múltiplas Tráfico de promessas e prostituição do desejo  Eletricidade  Correntes de paixão indomável  Lampejos de reconhecimento sem margens Descontinuidades vertiginosas Alianças  Destruição mútua assegurada  Amor e caos.
 A casa está a desmoronar-se As ruínas já não são só uma profecia  Nem uma metáfora  À nossa volta, dentro de nós, tudo desaba Mas enquanto o fim está em andamento  Há tempo ainda para se inventar e se tecerem novas cumplicidades  Enquanto tudo se encaminha alegremente para a extinção  Há toda uma realidade subterrânea em efervescência Em construção Ensaiando novas formas de passarmos os dias em conjunto Sem nos destruirmos mutuamente É certo que é só mais uma tentativa  Talvez ainda não a derradeira Quiçá esta nem sequer exista Novos veios se formam, intricados e rizomáticos feixes  Arquiteturas complexas e viscerais como teias Raízes que se solidificam expandindo-se incessantemente  Ante o colapso de toda a existência conhecida até aqui Quem sabe se não sobreviveremos a mais esta dura prova  E entretanto tenhamos aprendido a conviver com o sublime Sem o querer destruir de uma vez para sempre.
 Já faz séculos que andamos nesse negócio De inventar uma linguagem nova Para dizer as coisas antigas Quantas versões de fim de mundo já não teremos vivido Quantas tragédias sem par na humanidade e amores intemporais Somando a guerras devastadoras que tantas famílias separaram Colocando irmãos contra irmãos As gerações vindouras serão sempre decadentes em relação às gerações passadas No fundo as gerações por vir serão sempre um presságio do fim A civilização está irreversivelmente em colapso iminente  Quantos lamentos pela perda da idade de ouro E insistimos na procura de novas formas de dizer o mesmo Por outras formas e palavras Quem sabe nos tenhamos tornado pateticamente redundantes E o nosso ofício se resuma à liturgia Século após século, ano após ano, dia após dia, A ratificar a insofismável perda de uma linguagem sobre a verdade -- Mas qual verdade -- E a declarar a morte de algo que em nós nem nunca sequer teve vivo Nesse tempo em que não havia distinção entre aquilo que queríam
Sabemos que algo está sempre para vir Na iminência de chegar Com o seu rufar de tambores e os seus pássaros em debandada Mas não conseguimos saber exatamente o quê Ainda que muitas vezes consigamos entrever qualquer coisa Na penumbra, uma silhueta, um presságio Um exército de anjos apocalípticos em marcha Com as suas espadas sanguinolentas, os seus rostos brancos e a sua fúria demolidora O nosso temor reside neste intervalo Entre uma história que se recusa a cessar Um “movimento perpétuo” E o pavor ao novo, àquilo que está por chegar Mais ainda quando este se insinua Com a sua voracidade carnal e a sua sede de vingança Sentimos a sua presença como o bater de um coração O doloroso e angustiante arfar de um pulmão E nunca estamos realmente prontos Para o absolutamente Outro. 
 É uma tarefa verdadeiramente prometeica Quem sabe profética Nos libertarmos da vontade de violência De a todo o custo procurarmos inscrever a atemporalidade Na pátina da temporalidade De querermos a toda a força ir além das grades das nossas circunstâncias Bem como alojar as metrópoles no coração ardente das florestas E parece que não aprendemos a ser de outro modo A mudar de vida A nos extinguirmos vagarosamente  Sem assinaláveis sobressaltos ou arrependimentos Não deslizando pela ravina da indiferença radical Que tantos furgões repletos de pulmões humanos transportaram até Auschwitz Mas permitindo-nos, como num gesto de amável cedência e abnegação, Sermos graciosamente digeridos pela mesma terra que nos deu chão.
  Sabemos como uma só gota de sangue Na estepe coberta de neve É capaz de fazer transbordar toda a paisagem Como um pequeno seixo lançado contra o fundo do poço É capaz de fazer com que toda a cólera venha ao de cimo E era este o efeito que queria que tivesses na vida Que a tua chegada fosse o suficientemente arrebatadora A ponto de alterar a rotação da Terra De inverter o curso natural dos rios É incrível como com um só tímido sorriso teu Toda a melancolia se dissipa em teu redor Acaricias com a ponta dos dedos as flores E é a natureza inteira que vibra à tua passagem Gosto de te imaginar calcorreando os corredores Do teu vasto palácio de cristal Trazendo o dia quando abres a janela E precipitando a noite quando a fechas.    
  Qual a razão para entre nós e o mundo Sempre esta muralha de aço Este trilho de brasa e escolhos E a vontade que sempre se desfaz Quais ondas, uma e outra vez, pulverizando-se nos rochedos Como pode ser tão lancinante uma distância De dois palmos Por vezes habitamos de tal modo nas nossas obsessões E medos Que somos verdadeiramente incapazes de nos deixar De levantar a âncora Abandonados como estamos aos nossos fantasmas E ao culto da nossa personalidade Pudera em mim uma tal força de despojamento Uma ataraxia Que todo o meu eu se estilhaçasse Até conseguir definitivamente esquecer Que um dia tive também um nome Quem sabe uma morada e até uma profissão.  
De dia tratava da meticulosa distribuição dos corpos entretanto tombados Desses resíduos tóxicos que a sociedade sempre libertava e produzia À noite da exumação dos cadáveres Lavava-se e dedicava o resto do tempo À família, aos enlevados e imponentes tomos de poesia, A Bach e a toda a existência barroca À criação de mundos – como com vaidade gostava de dizer Com os grandes filósofos da humanidade E também da animalidade Refletia sobre o estado da alma e do mundo Dissertando sobre a existência ou inexistência do divino Aprumava-se a rigor para observar com deleite o firmamento Fazia amor e acabava as horas a pensar como a sua vida era perfeita E a sua felicidade plena Assim acabando por adormecer O ciclo repetia-se com a sua dança de extermínio e de êxtase De requintada, escrupulosa e burocrática destruição sistemática E de culto aristocrata do sublime e do ócio Levantava-se de raiz uma civilização inteira E o resto do esforço era empregue na oculta

Asseio

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    Das primeiras coisas que Medley reparara em Robert depois de terem ido morar juntos foi na sua obsessão pela limpeza. Não propriamente a limpeza da casa, com a qual era sempre desleixado e preguiçoso até ao tutano, mas o seu asseio pessoal, principalmente quando saía à rua, quando estava com os outros que não a sua Medley. Robert não apenas tomava banho garantindo que todas as partes do seu corpo eram meticulosamente agraciadas pela água, o sabonete e o champô, bem como se recusava terminantemente a usar a mesma roupa duas vezes seguidas sem ser lavada, o mesmo se aplicando ao calçado. Para além das unhas bem aparadas das mãos e dos pés. O desodorizante nos sovacos, o perfume no pescoço, a roupa sempre bem engomada e de aspeto imaculado, como se a estivesse a estrear naquele mesmo dia. Nem Medley conseguia ser tão exigente em matéria de higiene. Robert não tolerava a hipótese de exalar o mais anódino cheiro a suor ou ter as mãos sujas. A sua relação com a higiene das mãos era já

Herança judaico-cristã

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  Há merdas que depois de ditas tudo tornam claro atuando como verdadeiras epifanias. Mesmo sendo merdas que até já sabíamos mas que estavam como que a aguardar pelo momento certo para se revelarem em toda a sua intensidade e significação. E a verdade é que de facto a herança judaico-cristã da culpa sempre teve uma influência muito forte na minha vida, principalmente no que respeita às relações laborais. É como um aguilhão torturando a minha vida laboral; a relação com os colegas, com a hierarquia, com os donos dos meios de produção, com o trabalho em si. Uma espécie de culpa que se exacerba em tratando-se de relações de poder e de autoridade, de hierarquias. Só me sinto livre quando os outros são incondicionalmente livres e igual em meio de iguais; nunca numa situação de subordinação. E esta herança judaico-cristã extravasa a esfera da produção para se disseminar por todas as dimensões da minha existência à medida que interiorizo uma culpa que quanto mais recalcada mais difícil é de

A esquerda contrarrevolucionária

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O único horizonte revolucionário que a esquerda tem para apresentar para a nossa época é a revolução simbólica ou a revolução cultural num sentido não maoísta. Apesar da visão mecanicista e redutora a esquerda mais ortodoxa, os liberais e os conservadores intuem bem que a esquerda mais ampla, a esquerda do liberalismo, substituiu a luta de classes pela guerra cultural. É certo que uma reflete a outra e uma condiciona a outra, a luta de classes é uma luta cultural e não há classe que não se forme culturalmente, mas de uma forma meramente esquemática podemos dizer que a estratégia da esquerda deixou de ser o varrer a burguesia do poder substituindo-a pelo poder do proletariado (mesmo que de uma forma mascarada / teatralizada ) para passar a esgotar-se na conquista de maiorias. A esquerda “revolucionária” não quer a revolução mas o voto de confiança do eleitorado de forma a poder formar uma maioria governativa: aqui se esgota toda a sua escatologia e programa. E é talvez neste “realismo
 A verdade é que ninguém estava preparado para isto Para todo este esplendor E é tudo demasiado grandioso e épico Indescritível e improvável Neste mundo que será sempre um certo mundo A ponto de podermos passar uma existência inteira Feridos de deslumbre, hipnotizados pela nossa própria cegueira, Seduzidos por aquilo que é para nós inconcebível E incomportável  E mesmo a paisagem mais insípida e desoladora Repleta de construções em aço e estradas em alcatrão Contém em si a vertigem do único, do inefável, Por todo o lado, em toda a parte, Mesmo nas mais ínfimas das criaturas Dos mais universais dos elementos A mesma mistura paradoxal, inextrincável,  Da mais absoluta das necessidades Com a mais absoluta das contingências O universo inteiramente vibrando na sua infinita gratuitidade A recriar-se permanentemente sem que lhe consigamos vislumbrar Um princípio ou um fim  Uma finalidade ou uma orientação E as nossas palavras começam a ceder  E o coração a não acompanhar as exigências da natu
  Passamos toda uma vida a correr atrás do prejuízo Aqui o incêndio dá-se sempre muito antes do relâmpago Damos conta e já estamos cercados de labaredas É tudo demasiado intenso e fulgurante Para que possamos fazer planos A vida entra por nós adentro como um oceano inteiro Com as suas falésias e os seus corais E submerge-nos, tal como a terra nos sufoca e nos devora, Para aprendermos a nadar é preciso corrermos o risco De nos afundarmos Estamos sempre a caminho de qualquer coisa ainda que não saibamos Exatamente o quê A verdade é que estamos sempre e para sempre perdidos E como os bêbados ou os cegos apoiamo-nos nas paredes Tateamos a existência sem cuidar dos monstros nas fendas.

Pessoas caixas de surpresa e pessoas rasas

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Pessoas que são caixas de surpresa e pessoas que são rasas e meridianas. Era assim que Medley, num primeiro momento, dividia as pessoas. Robert pertencia ao primeiro grupo. O que, por um lado, a deixava autossatisfeita por ter escolhido amar alguém complexo, com muitas camadas, e, por outro lado, a deixava intranquila e insegura por toda a carga de imprevisibilidade que uma pessoa com essas características comporta. Quando Robert era luz todo ele luzia, mas quando era noite a noite em si era profunda e tenebrosa. Apesar da convivência de anos, da coabitação, tinha momentos que Medley sentia viver com um estranho, com alguém que não conhecia de facto. É verdadeiramente impossível atravessar a caixa-forte que cada pessoa encerra no seu corpo e na sua vida interior. Mas o mesmíssimo drama ocorre no interior de cada pessoa. Cada pessoa é para si mesma uma caixa-forte. Não conhecer Robert naquilo que este era em toda a sua radicalidade e ser era tão verdade quanto Robert não se conhecer a