Mãe só há uma


Trucidava-se por ter desejado a morte de sua mãe. Na verdade essa expetativa não o largava mesmo quando verdadeiramente já não desejava a morte da sua mãe. Na altura em que desejava a morte da sua mãe estava atafulhado em dívidas; desesperado pela falta de perspetiva; falido e sem emprego; sustentando-se a si e à sua mãe; e, claro, sem ter conhecido ainda a sua futura Medley. É evidente que nada podia justificar esse pecado capital do pensamento que é o desejar a morte de alguém, e logo de sua mãe, daquela que mais de o ter parido o criou até ser um homem (seja lá o que isso for) e conseguir pagar as suas próprias contas. E bem que queria livrar-se desses pensamentos tenebrosos mas eles circundavam-no e persistiam como se zumbissem permanentemente à volta dos seus ouvidos. Por mais que os enxotasse procurando desviar o pensamento para outros assuntos a ideia de que só queria ver a sua mãe morte retornava como que obcessivamente. E imaginava o dia da morte da sua mãe; se conseguiria chorar ou não; como reagiriam os seus amigos e conhecidos ao saberem que sua mãe tinha morrido e que estava órfão; como seria continuar a viver sem a sua mãe; que abraços, que palmadas nas costas, que palavras de consolação… E chegava sempre à conclusão que a morte da sua mãe era uma verdadeira caixa de Pandora ou um buraco negro, um abismo de incertezas. Não conseguia prever como reagiria a tal acontecimento, apesar de todos os ensaios mentais, nem como seria a sua vida daí para diante. Talvez não aguentasse; talvez isso precipitasse o seu próprio fim; talvez ficasse mais sozinho do que nunca ao ponto de tal solidão se tornar insuportável. Talvez, talvez, talvez. Mas agora só conseguia temer a morte da sua mãe. O dia em que, no local de trabalho, receberia a notícia de que a sua mãe morrera e como se iria comportar diante tal facto com o peso do absoluto; que gestos faria, que palavras teria… Será que não aguentaria a ponto de desfalecer? E depois organizar tudo. O funeral, pedir a baixa no emprego, ir progressivamente transmitindo a horrível nova de que sua mãe morrera, etc. Ainda ontem ansiava pela morte de sua mãe, suplicava secretamente aos deuses por ela, quase a verbalizava, e hoje tal hipótese lhe era insuportável. E quem sabe se não morreria primeiro que sua mãe! A justiça também consegue ser poética e irónica. Agora queria que sua mãe vivesse para sempre. Mas só agora que tinha um emprego estável, que estava apaixonado por Medley, que a mãe finalmente recebia uma pensão, que tudo se estabilizava, só agora temia que sua progenitora chegasse ao fim da linha. Como se tinha tornado mesquinho e até imoral.       

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