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A mostrar mensagens de novembro, 2023

Flirts

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  A sua situação inspirava qualquer coisa de romance de Nabokov. Por puro acaso encontrara-se com um amigo de adolescência e no meio da calorosa conversa este tinha-lhe contado sobre as suas peripécias amorosas. Que a última namorada que tivera tinha menos dez anos do que ele e que namorava atualmente com uma que tinha mais dez anos do que ele. Segundo o próprio o primeiro namoro tinha corrido mal pela falta de maturidade da ex-companheira, e o segundo, o atual, lá ia de vento em pompa, de tal maneira que já planeava emigrar com esta. À luz dos recentes acontecimentos Robert não podia deixar de sorrir ao pensar na surpreendente ironia das coisas. Ao contrário do seu amigo tinha namorado uma mulher dez anos mais velha do que ele e estava prestes a namorar uma rapariga dez anos mais nova do que ele. A primeira fora um desastre em termos amorosos e a segunda estava prestes a seguir, por razões diametralmente opostas, o mesmo caminho. No seu interior o conflito entre o seu desejo sexual

O amor e o sentido da vida

O amor não correspondido expressa uma falha num relacionamento desejado por um e repudiado por outro. O amor não correspondido é a frustração do amante diante da “coisa amada”. Não há reciprocidade e, por isso mesmo, este tipo de amor é vivido como humilhação e penosidade por aquele que ama sem ser amado. É verdade que existindo relação, mesmo relação pretensamente amorosa, havendo casal, é impossível medir os graus ou intensidade de amor que os amantes respetivamente dedicam ao seu par. Também por isso talvez muitos casais necessitem das provas de amor que cada envolvido na relação presta ao outro. Podendo dar-se então o caso de um elemento do casal julgar que dá muito mais amor do que àquele que recebe, e, por esse cálculo sentimental, ver-se como que “amputado” na sua relação. E o problema neste juízo de amor não correspondido é que o amante não consegue libertar-se da frustração de amar mais do que aquilo que recebe de amor por uma mera operação de troca material; como se o amor

Não há acasos

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Desesperava na noite fria do silêncio de Deus. Que vida pode afinal haver sem propósito? E não um propósito forjado, uma ficção ou alienação, uma ideologia. Mas um propósito real, tangível, não inventado. Sei lá, qualquer coisa como uma certeza, um fundamento simultaneamente último e primeiro, uma vontade das vontades. Compreendia que de nada lhe valia a liberdade ser um valor absoluto quando não tinha um propósito; e, mais radicalmente ainda, quando estava completamente abandonada a essa liberdade para nada . Estava disposto a abdicar de um quinhão desta liberdade idiota, insignificante, indigna, que não podia ser conceituada por verdadeira liberdade , em prol de um equivalente quinhão de sentido para a sua vinda, ou emergência, ao mundo. Neste mundo paranoico somos todos controlados, olhares escondem-se por detrás de olhares, mas quem controla o controlador? E não existirá um Grande Controlador, o Senhor absoluto da predestinação, o mago, o Mestre da vida e da história, secretament

Testemunho

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Ainda nem tinha falecido e com o passar do tempo sentia-se cada vez mais como um ser mitológico. Vivia numa espécie de limbo ontológico. Era e não era. De tal forma enredado que estava nas suas rotinas que a sua personalidade não se distinguia da de um adereço, mesmo que em movimento, um figurino nesse palco sem margens que um demiurgo prepara para seu gozo pessoal, para seu desfrutar olímpico. E à medida que os dias se extinguiam no calendário também as fronteiras entre o real e o sonho se dissipavam. Tudo se tornava irreal, fantasmagórico, espectral. Robert assistia, já sem pavor nem ponta de espanto, ao modo como paulatinamente se invisibilizava. Como a realidade se lhe escapava tornando-se granulosa, por vezes gasosa. A morte cercava-o por toda a parte tornando a vida num seu simulacro, num sinistro jogo seu. Robert sentia-se como parte involuntária dessa farsa cósmica que requeria, nada menos, do que a mobilização de todos os poderes do universo, da criação inteira. Sentia que d

O tempo que nos devora

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  Essa contradição dilacerava-o. De um lado, a implacável maquinaria das instituições que replicavam com exemplaridade a predestinação divina; do outro, o sentimento de que não controlava o seu destino. Quando era criança leu um conto sobre uma outra criança que desejava de tal forma conhecer o seu futuro que uma fada lhe ofereceu um novelo que a fazia envelhecer, antecipando assim o futuro, à medida que o desenrolava. E sem fazer muita atenção ao conselho da fada para usar o novelo com precaução começou por desenrolar timidamente o emaranhado de fios logo se descobrindo na adolescência e a experimentar o primeiro beijo. Desenrolou mais um pouco e já se matriculava na faculdade de letras. E como se a curiosidade apenas aumentasse à medida que via, na verdade vivia, o seu futuro, continuou a desenrolar até se encontrar casada e com dois lindos filhos. Mas o seu desejo de conhecer o que seria feito de si, da sua vida, ao invés de diminuir apenas aumentava. Desenrolou ainda mais. Agora

A fuga ou a mentira

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Para que sua avó não morresse do desgosto de ver o seu neto favorito espatifar, uma vez mais, a sua vida, Robert passou a empregar uma significa parte dos seus esforços a esconder a verdade da avó. Nada que não tivesse já visto, se bem que em outra escala, em filmes como o Underground do Kusturica ou o Good Bye Lenin! do Becker. Fingia que estava tudo bem, que mantinha o emprego digno – quase de sonho – que na verdade havia perdido já fazia meses. Na sentença que ditou a sua demissão por parte do empregador figurava a letras gordas o anátema: Inapto para o posto de trabalho. Na altura ficara devastado; ainda hoje estava devastado, a diferença é que acabara, como sempre, por se conformar. O emprego em causa significava a sua ascensão no elevador social e o reconhecimento da sua inteligência, personalidade e competência, o seu pretenso “estatuto social”. E acabara por o perder por seu caráter extrínseca e intrinsecamente inepto; por sua incapacidade técnica e tibieza de personalidade

A vingança e o sentido da vida

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  Depois de ter falhado em tudo o que o movia era a vingança. E talvez Robert não se apercebesse o quanto o ressentimento lhe roubava os anos de vida; lhe toldava a relação com o mundo tornando a sua existência num fardo e fazendo-o profundamente infeliz. É assim natural que corporizasse uma espécie de bomba-relógio ambulante. Toda aquela frustração acumulada fazia com que vivesse sempre em borderline , no limite. Talvez se tenha mistificado muito para além daquilo que era realmente capaz, daquilo que era realmente; talvez tenha projetado em si – e deixado projetar – demasiadas expetativas. E agora era-lhe quase insuportável gorar essas expetativas, no fundo falhar. No ápice do seu desalento preferia matar-se a ter de confessar, pelos atos, a sua mediocridade, o seu caráter apagado. Então só um princípio, só um móbil, só um impulso, permitia ainda que resistisse a cada queda, a cada volte-face, a cada projeto falhado, a cada humilhação, a cada incapacidade. Enquanto alimentasse o des