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A mostrar mensagens de agosto, 2023

Amizade

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Medley ficou muitíssimo perturbada quando Robert lhe contou que tinha morto uma pessoa. É certo que fora um acidente, ainda assim… No momento daquela tenebrosa confissão que deixou Medley quase sem respirar, de olhar estupefato e boca aberta, parece que o mundo inteiro se fechara em torno dos dois; de súbito ficou escuro e assustadoramente silencioso. Como podia continuar amiga e companheira de alguém que tinha morto uma outra pessoa? Abismou-a ainda mais profundamente o sinistro facto de Robert não ter exibido o mais leve indício de remorso perante uma vida ceifada numa condução bêbada e alucinada. Robert continuava a falar apenas de si e de si sem a mínima referência à humanidade da vítima e ao facto de abruptamente ter liquidado uma possibilidade de ser; de ser o único e derradeiro responsável da extinção violentamente negligente e leviana de um milagre feito carne. Como podia Robert não conseguir entender em toda a sua profundidade a irreversibilidade do seu ato? Medley percebeu

Da luta de classes ao choque ontológico

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  O “milagre” ou a “solução” da democracia liberal foi o de internalizar o conflito institucionalizando-o, dotando-o de regras, equilibrando-o com preceitos universais plasmados no texto constitucional, dividindo o poder de forma organicamente viável, separando o executivo do legislativo e do judicial. As democracias do capital tal como as conhecemos são verdadeiramente democracias dos partidos . São estes partidos que corporizam as ideologias e respetivos mundos que a democracia permite de acordo com as suas balizas normativas, com as regras constitucionais. O espírito e a lei da competição partidária pelo poder resume-se essencialmente à não transgressão do ponto a partir do qual o partido, a máquina partidária, se confunde com o Estado; quando o partido se torna absoluto ou, na fórmula leninista, “partido único”. A divisão secular das forças políticas entre esquerda e direita procura esgotar todo o sentido do conflito social assim o confundindo com a própria vida democrática. Mas

A paixão pela desigualdade (Rancière vibes)

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    Seriamos capazes de viver sem prestígio, sem comendas, sem títulos, sem prémios, sem honras nem glória, sem elites, em suma, sem desigualdade? Qual a razão para amarmos tanto não a diferença, a qualidade do que é diferente ainda que igual (como no famoso slogan), essa multiplicidade aberta e horizontal, mas a desigualdade como expressão de uma diferença positiva , de uma relação vertical e fechada, isto é, hierarquizável, reflexo de uma relação assimétrica de poder – mesmo se simbólico? Mesmo as forças políticas mais igualitárias e coletivistas (e seria preciso distinguir ainda os dois conceitos que não são necessariamente compatíveis) como as tradicionalmente conotadas com a esquerda não conseguem passar sem o seu panteão de referências, os seus heróis de militância e as suas vanguardas culturais, e, já agora, sem as suas personalidades mediáticas de que dependem para a competição pela atenção do potencial eleitorado. O fetiche pela desigualdade não desaparece quando a persona

"Noites brancas"

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A solidão era tamanha e a urgência de se libertar das tantas emoções recalcadas que qualquer imagem de comoção coletiva ou pequeno gesto de superação e de humanidade o emocionava e o fazia chorar. Sim, Robert chorava baba e ranho. Lembrava-se que fazia décadas que não conseguia libertar uma única lágrima e agora, numa catarse, purificava-se pelo choro. Chorar sem freios era como libertar-se de um peso monstruoso que o martirizava solitariamente. Apesar da sua máscara de sujeito introvertido, reservado e até um pouco elitista, também não conseguia passar indiferente ao desejo de brilhar, da ânsia de uma fugaz aparição na televisão, uma pequena nota no jornal onde inequivocamente viesse escrito o seu nome e, quem sabe, relatada a sua história ; de poder apresentar-se diante dos seus semelhantes com a figura e a confiança de alguém que já tinha feito qualquer coisa , que era também qualquer coisa e não apenas mais um entre a ruidosa multidão de uns. O abismo da sociedade do anonimato apa

“Em busca do tempo perdido”

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Não era bem uma “busca do tempo perdido”; não pretendia ajustar contas com o passado. Começara a fascinar-se pelas suas memórias e quando deu conta estava aprisionado no labirinto do passado. Não sabia responder se voltar a essas imagens era procurar conhecer-se ou revoltar-se contra o tempo decorrido; o tempo que sempre decorria. A vida, qual curso de água, parece correr incessantemente e nós, passageiros, não temos como impedir o seu processo; somos como troncos, lodo ou algas que o rio empurra sem cessar. Habitar nesse tesouro a que chamava o vasto palácio da memória (ou era o Santo Agostinho que assim o apelidava!?) era ajustar contas não com o passado, mas com o presente, com o irrefreável “anjo da história”. Em cada uma dessas lembranças, dessas projeções, sabia que era ele próprio a ocupar o centro de cada um dos cenários, mas, ao mesmo tempo, sabia que já não era ele, que ele era também um outro. Mas era preciso reconciliar-se com esse outro que era ele mesmo e ciclicamente

Sobre pequenos grandes ódios

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  Acompanhado por tão ilustres personalidades como Karl Kraus, Thomas Bernhard, Ingeborg Bachmann, Elfriede Jelinek, Robert começou a desprezar, à sua escala, a sua “pequena pátria”. Há pouco mais de uma década que se tinha mudado para um pequeno concelho limítrofe a uma cidade média da região e cada vez mais se tornava insuportável ter de viver ali. Eram os vizinhos inúteis e obtusos com os seus tratores e as suas enxadas e o seu olhar estulto; era o poder político tacanho e caciquista com a sua fala afetada e o seu ar emproado; era a elite económica provinciana e despótica que se ria alto e tratava com desdém ou paternalismo, às vezes as duas coisas, os seus empregados e toda a gente que os rodeava; eram, enfim, as suas gentes comuns totalmente destituídas, medíocres, enfadonhas, saloias, com as suas mulheres malcriadas e promíscuas e os seus homens semianalfabetos e unidimensionais. Como gostava de se imaginar como um tipo simples, ainda que sofisticado; sem ostentação, ainda que

A virtude política das ideias radicais

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A atração pelas teorias políticas mais radicais e subversivas não se explica, como o pretendem os conservadores, por um qualquer gosto perverso pela violência, ou por uma ressonância de estrutura religiosa, ou por pura imaturidade e privilégio cívico, ou por fazer parte dos “vencidos” do sistema… Nada disso, se sou um radical apaixonado por ideias radicais -- o que não faz destas teorias conspirativas e, muito menos, fascistas – é porque estou convicto que a sua virtude está no modo como estas ideias são capazes de apreender o mundo como um todo para lhe denunciar a contingência onde o pensamento dominante diz só haver necessidade histórica; de colocar em marcha a possibilidade da alternativa radical , ontológica, onde a doxa dominante assegura não haver alternativa. As ideias radicais transportam-nos para as margens da sociedade, da política, da história e da economia. E as margens são vitais ao pensamento e às práticas radicais porque elas ensinam-nos que o universal de que o pens

Nós, os respigadores

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  Ando em círculos, se escrevo não é porque tenha alguma coisa relevante a comunicar aos meus semelhantes, aos que partilham da gramática humana, ou, pelo menos, alguma coisa suficientemente digna e original para se inscrever nas tábuas da escrita. Há uma certa vaidade e um certo prazer estético, só isso, de resto as mesmas ideias de sempre, os mesmos dogmas, os mesmos preconceitos, que como que me rodeiam e voltam sempre a assaltar as veredas da minha criação sem criatividade. Se eu pudesse ao menos ter um rasgo, uma ideia suficientemente fulgurante da qual pudesse dizer: “isto é meu, isto não é propriedade de mais ninguém, isto sim, o mundo ainda não tinha visto nascer…”. Mas não, parece-me que estou condenado a escrever o mesmo de sempre por outras palavras, às vezes pelas mesmíssimas palavras; quem sabe se escrevo aos quarenta aquilo que já escrevia aos vinte… Mesmo as ideias que tomei por minhas, que fiz questão de confundir na minha personalidade política e moral, além de não ser

Um elogio ao anarquismo

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Aprendemos a separar a política do social, apesar de nós, os pobres, os oprimidos, os explorados, sermos as primeiras vítimas dessa separação, da separação entre a política e a sociedade. O “pecado original” reside neste ponto: a legitimação, irrefletida ou não, naturalizada ou não, da separação entre os políticos como casta e a sociedade civil. Nas sociedades com Estado (para usar uma fórmula do etnólogo Pierre Clastres) o negócio da política passou a ser o negócio dos políticos e os negócios da sociedade os negócios não-políticos, a economia propriamente dita. E, por isso mesmo, retomar a questão política não como questão exterior à sociedade mas como “essência” vital da sociedade é um desígnio igualitário e politicamente revolucionário. Dar a ver a política onde os políticos afirmam não existir política, como na realidade quotidiana das classes oprimidas e exploradas, é desmantelar esse dispositivo histórico da representatividade que aliena a política da sociedade. Reivindicar a

O tempo das vítimas históricas

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Vivemos o tempo das vítimas históricas. Dessas vítimas que não são apenas vítimas de um ato de violência circunscrito num espaço e num tempo concreto, vítimas que respeitam exclusivamente a elas mesmas e às suas circunstâncias, mas vítimas absolutas que transcendem a violência contextual de que foram vítimas. São vítimas de alcance universal portadoras do significante de toda a violência exercida sobre os seus corpos ao longo dos tempos. Séculos de história que consolidaram diversos tipos de opressão inscrevendo a desigualdade nos corpo das sociedades ocidentais fizeram emergir essa vítima histórica que carrega o fardo de toda a violência depositada sobre todos e todas os que partilham da mesma condição. É assim que o negro, a mulher, o homossexual, o proletário… não são apenas vítimas do racismo, do machismo, da homofobia, da exploração… que infligem sobre os seus corpos e espíritos, mas vítimas de toda a história do racismo, do machismo, da homofobia e da exploração praticadas a

O anónimo heroico

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O que é crescer senão ver os sonhos desvanecerem-se um após o outro? É claro que entretanto podemos encontrar novos sonhos e conquistá-los enquanto os chamamos de projetos ou até conseguirmos a proeza de alcançar o nosso ideal de vida, mas nem por isso a distância entre aquilo que idealizamos e a sua materialização na vida quotidiana se desfaz. Porque a vida não é a exceção, os dias fora do comum, a singularidade da alegria, essa compactação no espaço-tempo, a vida é o normal, a quotidianidade, a inscrição anónima e rotineira na comunidade dos comuns (perdoe-se o pleonasmo). Crescemos, estudamos, arranjamos um emprego, casamos, temos filhos, militamos num partido, numa instituição de voluntariado ou numa igreja… vocês sabem, por estas ou por mais sinuosas vias (por vezes completamente heterodoxas), a força do social acaba por tudo atrair e a vida fulgurante e mágica que imaginámos para nós acaba sempre por revelar-se como uma vida entre todas as possibilidades de vida – e faz todo

O homem religioso ou os (in)sondáveis caminhos da fé

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    É frequente os ateus zombarem da fé dos crentes. Creem que o homem religioso é um anacronismo e um atestado de menoridade dos respetivos homens e mulheres de fé. Ser religioso é para estes estar recuado no tempo e alienado. É claro que qualquer um destes epítetos é passível de ser aplicado tanto no homem de fé como no ateu, mas onde o religioso se separa do ateu é não apenas no reconhecimento que o primeiro faz da precariedade da sua condição existencial (abismo até onde o ateu o segue), mas, daí decorrendo, a prece por um ser transcendente na qual deposita a sua confiança no mundo; o reconhecimento do “milagre da transcendência” que como que encerra o igual “mistério da imanência”, do mundano. Ao contrário do que pensa o ateu a condição do homem religioso não é a condição do humilhado, daquele que sacrifica o seu intelecto e a sua vontade em prol de uma mistificação; o homem religioso é o sujeito que pelo ato de fé transita do reconhecimento doloroso da sua fragilidade insupe

Eu sou um outro

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  Enquanto a juventude se aparta de mim lembro-me de ter tomado por insígnia o ímpeto rimbaudiano de ser um outro, “ car je est un autre ” (“porque eu é um outro”). “ Il faut être absolument modérne ” (“é preciso ser absolutamente moderno”). Vivi então uma parte significativa da minha juventude, entre a adolescência tardia e os primeiros anos da idade adulta, fascinado pela possibilidade de me transfigurar, de ser um outro , e convencido de que de facto era possível ao humano em geral mudar de personalidade da noite para o dia. Se o eu é um outro, se ele é sempre, consoante a fórmula marxista, um indivíduo-social , então o eu não passa de uma máscara, de uma persona , de um invólucro vazio, de uma superfície plástica, que é sempre possível transmutar pelo efeito exclusivo da vontade do indivíduo – uma vontade férrea, por certo, mas uma vontade. O Outro é real, tem substância, o Eu é uma ficção, uma possibilidade. Entretanto cresci e perdi essa ilusão, não sendo talvez por acaso que a

A religião como fenómeno racional

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  Tendemos a compreender o fenómeno da religião sob a suspeita de uma espécie de penetração do irracional nas crenças básicas do humano. E o fenómeno religioso é de facto tão complexo e tem tantas camadas que é impossível pretendermos esgotá-lo numa única definição, abordagem epistemológica ou modelo explicativo. Acresce ainda que o binómio racional/irracional obscurece mais do que aclara no que trata à adesão dos crentes ao religioso. Não só porque tudo o que é compreensível é consequentemente racionalizável – não podemos explicar aquilo que é da dimensão do irracional, mesmo quando essa “irracionalidade” (que é sempre uma irracionalidade à luz de um certo modelo de racionalidade) determina os comportamentos do indivíduo ou de um dado coletivo --, como essa adesão ao religioso, enquanto aquilo que transcende o âmbito da compreensão e da ação humana, pode ser entendida como um ato perfeitamente racional. Neste sentido, podemos dizer que a religião surge como a resposta racional, até

A política, essa coisa suja

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A política tanto é o reino da liberdade e a expressão da luta pela liberdade civil por parte dos oprimidos e explorados como é uma “coisa suja” e uma “porca” que dá de mamar às elites económicas e sociais da qual fazem parte alguns dos nossos empresários e políticos. A promiscuidade entre os negócios do Estado e os interesses do Capital comprova-o à exaustão. Mesmo a esquerda mais “antissistema” não é incólume a essa ambiguidade da política e que faz desta esquerda tanto a promessa de libertação da política como instrumento da dominação de uma classe sobre outra, quanto a continuação da mesma “velha política” porca não por outros mas pelos exatos mesmos meios. A política tornou-se num negócio sujo, numa dirty thing , a partir do momento em que se separou da “substância vital da sociedade” deixando-se de com esta se confundir; em que a política se transformou numa atividade do Poder contra a sociedade, separada e distinta desta, sendo que a instituição do sufrágio universal não repre

A tonalidade afetiva da nossa época

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    A tonalidade afetiva que define o nosso tempo é a que resulta do sentimento de catástrofe iminente – isto mesmo dando de barato a discussão sobre o quanto esta é de facto real (e ela é assustadoramente real, mais real ainda do que toda a construção de que o dispositivo mediático depende, o real é neste caso mais sensacional do que o artifício). Lembramo-nos daquelas cenas míticas do filme Exterminador que descreviam o estado de felicidade relativa das famílias num parque infantil -- os sorrisos, o baloiço para cá e para lá com uma criança a bordo, uma jovem mãe a empurrá-lo -- instantes antes das bombas nucleares arrasarem com tudo. Este sentimento de temor inexpugnável, do qual não nos consigamos libertar apesar de todos os nossos esforços, guarda algumas similaridades com os anos quentes da guerra fria, mas agora a ameaça não nos parece provir desse Outro com rosto humano que prontamente eliminaríamos se o pudéssemos fazer. Na verdade, a origem, a culpa do nosso temor cala

Interpelações profanas

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Quantas serão as vezes que teremos de matar Deus para ficarmos satisfeitos com a condição do silêncio absoluto, com a inospitalidade radical? Conseguir-nos-emos afinal habituar a esta derrocada de todas as referências do transcendente – mesmo se um transcendente mistificado. Parafraseando Camus: a única questão religiosa realmente importante é se conseguimos viver sem deuses? E os deuses conseguirão resistir sem nós, depois da extinção da espécie humana? A que estarão estes destinados quando os seus animais de companhia preferidos se forem também consumidos no inferno do capitalismo? Pretenderão mesmo salvar-nos? E nós, quereremos mesmo que o além da compreensão humana se rebaixe para nos salvar, que tenha compaixão de nós? A que deveríamos afinal essa honra? É que se a enésima ensaiada morte de Deus abre para as sociedades humanas um problema do qual ainda hoje continuamos a sentir as réplicas (apesar de todo o nosso pretensiosismo ateu), a morte do humano como espécie nada represe

O académico dividido

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Ensinar é repetir-se. Podia voltar daqui a vinte anos às cadeiras que ocupei durante os meus anos de faculdade que lá estariam os mesmos professores – se entretanto não mortos, enlouquecidos ou aposentados – a ensinar a mesmíssima matéria com o mesmíssimo estilo, o mesmo tom de voz, as mesmas referências e toda a teatralização envolvente. O académico é aquele que incorpora duas instituições distintas ainda que íntimas entre si: a do professor e a do investigador. Enquanto professor o académico representa a continuidade pela ritualização do ato de, ano para ano letivo, se repetir nas matérias e respetivo leccionamento, nas suas fontes e na sua metodologia, enfim, na sua pedagogia; mas enquanto investigador o académico é impelido pela missão de proceder de maneira exatamente inversa à da sua carreira professoral, procurando ali a rutura onde aqui há continuidade, a originalidade sobre o autoplágio, a criatividade sobre a monotonia, a “destruição criadora” sobre a disciplina de fábrica.

Olhos, para que vos quero?

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Não sei se os “olhos são a janela da alma”. Creio mesmo que é por puro preconceito que procuro no olhar dos outros a essência do seu caráter, o seu brilho intrínseco, a sua personalidade distinta, a sua singularidade, aquilo que o distingue dos demais. E olhos e olhares há para todos os gostos. Não se trata apenas da cor dos olhos, trata-se também da específica luminosidade dos olhos, da tonalidade concreta dentro da cor genérica dos olhos, da sua incandescência, mas também da sua intensidade, se são olhos mais mortiços, ou, pelo contrário, mais vivazes, se são mais destemidos, ou, pelo contrário, mais tímidos e fugazes. Lembro-me de ler alguém escrever sobre essa opacidade do olhar que torna as pessoas impenetráveis, indecifráveis, e, também por isso, sinistras e imprevisíveis/perigosas. Entretemo-nos a procurar nas peculiaridades do olhar a personalidade do psicopata; ou no olhar subitamente arregalado a denúncia do desejo ou mesmo da malícia que se fez ou que se está prestes a faz

Deambulações filosóficas

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  Rancière recupera um pequeno artigo de um jornal operário (penso que do século XIX) que narra a estória de dois trabalhadores que estando a laborar na construção de uma casa para uns proprietários burgueses se desviam do seu ofício para se perderem em considerações sobre o que fariam se aquela casa lhes pertencesse. Esse gesto de nos distrairmos, de nos deixarmos levar pela imaginação, acontece-nos também quando estando no emprego, ou em alguma situação menos agradável, e desejando regressar a casa, fazemos mentalmente essa viagem, antecipamos o trajeto que desejamos percorrer até regressarmos à segurança e conforto do nosso lar. De alguma maneira a nossa ansiedade inscreve a rotina no que nela há de mais naturalizado, irrefletido e circular. Mas há outras formas de viajar, formas disruptivas, que recusando repetir caminhos antes se fazem do desejo incessante de trilhar novas estradas. Que não têm destinos marcados, nem casa de partida, nem nostalgia ou saudade e em que cada novo m

A contestação da ordem como contestação da autoridade

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  Pouca coisa define melhor a autoridade do que a dispensa de justificar a ordem. Toda a criança sabe que não vale a pena contestar a ordem da mãe, que tem de obedecer simplesmente porque sim, porque não quer forçar a mãe à necessidade de repetir a ordem. E o que acontece na educação no seio familiar é extrapolado para todas as instituições onde há relações de poder e hierarquia. Se o subordinado ousa, mesmo se em silêncio, contestar a ordem, repudiar o seu sentido, a autoridade do subordinante é ferida. E talvez a importância do cultivar do sentido crítico, nomeadamente no campo das designadas Humanidades, e em particular da filosofia, resida precisamente nessa capacidade de suspender a verticalidade da ordem, a perfeita adesão que ela requer como símbolo da afirmação da autoridade. Ganhar distância face à ordem, ousar interrogá-la, é ganhar distância face à autoridade, e, por extensão, à naturalização da hierarquia. O que poderá ser mais ameaçador a um edifício institucional assent
  Nem sempre existimos Às vezes estamos cercados de palavras Que, de olhar severo e de dedos em riste, Nos julgam com a sua parafernália de signos E de sons cada vez mais indiscerníveis.   Às vezes as palavras levitam E seguem o seu próprio trilho E já não nos reconhecem Nem nós nos reconhecemos nelas: Estamos de costas voltadas.   Talvez as palavras nos desprezem Ou nos usem, nos embriaguem, Nos encantem, Para depois então extraírem Tudo o que podem do nosso Estado febril, Da nossa cegueira.   Sim, também as palavras nos oprimem, Com a sua imaterialidade, A sua existência espectral, E deixam de ser percebidas, Perdem a sua aderência às coisas, Não transmitindo mais do que sons confusos E imagens delirantes.   Como um sonho contínuo Ou uma droga milenar.

Não podemos afirmar a inexistência de Deus!?

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  O que se diz do e no ateísmo é que não se pode provar nem a existência nem a inexistência de Deus. Está fora dos limites da experiência possível. Mas como não se pode provar a inexistência de Deus se ele é um conceito vazio, se não sabemos ao que nos referimos quando nos referimos a Deus, se não é possível obtermos, ao jeito de Wittgenstein, uma “imagem pictórica” de tal entidade, se ele é um conjunto de predicados sem sujeito? Mas, assim o sendo, porque não podemos postular a inexistência de Deus quando o seu conceito é sem referente? Se Deus é um ser superior, mesmo se superior a todas as entidades concebíveis, o que faz deste qualitativamente – e não quantitativamente -- mais do que uma espécie alienígena mesmo se com atributos poderosos? Se Deus é o nome que designa aquele que criou o mundo, que existe antes e existirá depois deste, e que “iluminou”, segundo o cristianismo, a humanidade dos princípios éticos mais elementares por meio da revelação, onde reside  então   o segre

Sobre o modo de como os sonhos se desfazem

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  A meritocracia é uma forma de nos auto-explorarmos e uma forma de legitimação da desigualdade. A função ideológica da meritocracia é o de levar alguém a aceitar o seu insucesso social baseando-o na sua falta de mérito, na sua falta de esforço e talento; ou, no sentido inverso, a justificar o seu sucesso por um valor que é, no limite, imensurável: o mérito pessoal. A sociedade não está orientada para a realização dos nossos desejos nem para perseguirmos o nosso ideal de felicidade a partir do modo de vida que livremente escolhermos. A sociedade está politicamente organizada para a realização do capital e o que a comanda/determina não são os nossos projetos, os nossos desejos, os nossos sonhos e ambições, mas as leis e as forças do mercado. A chamada “crise das humanidades” tem um rosto muito concreto e ele dá pelo nome, não de neoliberalismo (ou essa espécie de capitalismo mau), mas simplesmente de capitalismo. Não podemos ser tudo o que queremos, nada mais ilusório do que a propalada

Sobre o conceito de universalismo: uma ambiguidade fundamental

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  O universalismo está sob suspeita e até em crise, e, talvez por isso, seja ponderada a realização de um diagnóstico político da crise do universalismo. Mas, antes de mais, talvez seja positivo termos presente que os conceitos políticos são conceitos atravessados pela polissemia e em disputa permanente. Os conceitos políticos não dizem respeito a essências nem os seus referentes são estáveis e objetivos. Dependendo dos fins políticos em causa e do respaldo ideológico o universalismo pode ser algo positivo ou algo negativo. Para uma filosofia política da emancipação o universalismo é nefasto quando confunde o todo como uma das suas partes, fazendo passar por interesse universal aquilo que é do interesse particular, de uma classe particular que disputa a hegemonia política sobre o social (o universal). Mais ainda, o universalismo é uma ideologia ao serviço da dominação quando visa fundar as sua “leis” num campo a-histórico; quando confunde o culturalmente contingente e aberto à disput

Sobre o conceito de ateísmo

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Em sentido estrito o ateísmo não nega nem afirma a existência de Deus; o ateísmo como que retira Deus da cena do mundo. Para o ateísmo todas as provas da existência de Deus (desde cosmológicas a ontológicas passando pela revelação e os milagres) são irrelevantes e, principalmente, intrinsecamente inválidas; o que se aplica também a quaisquer provas sobre a inexistência da divindade. O corte que o ateísmo realiza no mundo em relação à religião é o da destituição da transcendência; desse viver sem “a hipótese de Deus”. E tal como a religião o ateísmo é capaz do pior e do melhor, do belo e do feio, do medíocre e do sublime. O ateísmo pode deixar cair a humanidade no vazio existencial do niilismo implicado na célebre fórmula de Dostoievski do “tudo é permitido!”; como fornecer o suporte epistemológico incontornável para a realização terrena da humanidade num mundo sem salvação e transcendência. O ateísmo tanto pode abrir caminho para o desespero como para a alegria. Para as “paixões triste
  Nem sempre nos queremos aborrecer nem parecer asquerosos e vis, enfim, velhacos, mas há tanta estupidez no mundo que por vezes é mesmo preciso intervir; dizer que as coisas não se passam bem assim, que aquilo que o nosso interlocutor está a dizer nem é propriamente novidade nem é propriamente genial. O pior é que cada uma destas tentativas para frear a contaminação da estupidez resultava sempre infrutífera. A estupidez está de tal modo entranhada no modo de ser e de estar dos humanos que estes já não sabem viver sem ela. E então às vezes, pensava Robert, o melhor mesmo era deixar a estupidez fluir à vontade; dar livre curso à estupidez no mundo em tudo o que esta contém de excêntrico e de inacreditável. Mas, noutras vezes, a estupidez era tamanha, era de tal forma exagerada e abundante, que se não fosse travada corria o risco de colocar em causa a sobrevivência da sociedade, quando não da própria espécie. Mas recusava-se a vestir o fato do iluminado que assume por missão devolver alg