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Náufragos

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  O nosso ofício não era o de enterrar os mortos, livrarmo-nos dos seus corpos, nem sequer o de curar os feridos e os doentes; o nosso ofício era o de não deixar afundar os náufragos. Porque eles já eram náufragos antes mesmo de se afundarem. Mas era imprescindível não os deixar afundar ainda mais. Cuidar dos náufragos: assim se resumia o nosso trabalho. Não transportávamos os cadáveres numa barca para o reino dos mortos, nem curávamos as maleitas dos enfermos com as nossas caras de anjo e as nossas doces mãos de fada. Lançávamos precárias e finas ripas de madeira a esses náufragos da vida que se amontoavam indefinidamente formando uma montanha interminável de corpos de náufragos; corpos nus e amarelos de náufragos onde não se conseguia discernir muito bem onde terminava o braço pendente de um da mirrada perna de outro, o olho de um do umbigo de outra. Alguns náufragos viviam nas costas de outros náufragos e estes nas costas de outros e assim sucessivamente. Mas no fundo todos eram náu

Um coração ardente

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  Medley estava especialmente triste, tão triste que o mundo inteiro se prostrava diante daqueles olhos azuis prestes a colapsar. Robert, meio confrangido mas com o peito cheio de comiseração, procurava as palavras certas para a confortar, mas não existiam as palavras certas perante quem se perguntava qual a razão para continuar a viver, a empurrar a vida com os fármacos e a esperança de aparecer alguém disposto a ouvi-la, pelo menos por um dia, por uma hora, por uns minutos. E sabendo da sensação de abandono a que Medley, com os seus imponentes oitenta e nove anos, se sentia votada, perguntou-lhe sobre a família. A filha estava em França fazia mais de quarenta anos; a neta vivia perto mas trabalhava numa fábrica e poucas vezes arranjava tempo, e talvez disposição, para visitar a avó; já o neto… O neto era o grande amor da sua vida. Estava por Lisboa a tentar sobreviver às rendas incomportáveis, à vida caótica dos transportes públicos, a procurar adaptar-se a uma realidade inimiga das

Comunhão

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  Por vezes punha-se a falar e as palavras como que se desviam do seu contexto e até do seu interlocutor. E eram como palavras mágicas, palavras espectrais. Principiava a devanear. E Medley, ao telefone, escutava-o com paciência infinita, mesmo com curiosidade devota, esperando que Robert dissesse qualquer coisa de inteligente que finalmente lançasse alguma luz sobre as suas dúvidas. Dependia da luminosidade da palavra. Ou esperava dele mensagens de conforto e de assentimento, que a fizessem sentir que Robert a percebia e que aprovava os seus sentimentos e as suas conclusões. Na verdade sofria pela sua autoestima. Mas às vezes não conseguia obter do outro lado muito mais de que um curto mas suficientemente glaciar silêncio, ou um desenxabido e condescendente: hum!... pois!... claro!… E Medley lá ficava perdida no fundo do seu poço de dúvidas e de carências. Por vezes Robert interrompia os longos monólogos partilhados de Medley e esta rapidamente se predispunha a prestar-lhe toda a

Ser um outro

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  Na sua juventude viveu sempre sob o preconceito – e máxima – de que era possível, a cada dia, transformar-se, “ser um outro”. E a cada manhã onde despertasse era o mundo inteiro que despertava consigo. Um pouco como se fosse um camaleão, alternando de personalidade e de atitude consoante a sua vontade. A juventude era verdadeiramente a representação do reino da liberdade. E com o amadurecimento essa ilusão de poder ser o que quisesse, bastando para tal a capacidade de mimetizar os outros, foi-se esvanecendo, perdendo o seu fulgor. Perder a juventude significava para si não propriamente estagnar, ficar paralisado numa certa conceção sobre si mesmo, não conseguir reagir sequer à circunstância, mas já não ter capacidade – nem força -- para largar a cada vez mais pesada bagagem que carregava. Parecia que o passado, o seu legado, teimava em retornar com toda a sua violência incontrolável de cada vez que o procurava definitivamente deixar para trás. Concordava com o famoso título de Ro

Idade-limiar

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  Sentia-se viver numa espécie de idade-limiar. Entre a decadência que se avizinhava, que já presenciava, e a juventude que se perdia, que já tinha perdido. Então não tinha nada a perder pois estava à beira de tudo perder. Se queria dar um rumo à sua vida era agora. Um só ano mais tarde bastaria para já chegar demasiado tarde. E entretanto o tempo impunha a sua lei de aço. As rugas sinalizavam algo de irreversível, que já tinha passado para o outro lado dessa espécie de curva da oportunidade. Agora dependia menos da iniciativa do que da fortuna, do acaso. Esperava e essa espera angustiava-o, exacerbava a sua melancolia. Havia desenvolvido um profundo receio de acabar os seus dias sozinho. A solidão apavorava-o. Logo a ele, que sempre dependera da sua reclusão, e também tristeza, e se acostumara a se desenvencilhar sozinho. E agora a ideia de ficar sozinho significava para ele fracasso, incapacidade de compartilhar a sua vida íntima com alguém, de alguém querer partilhar a sua vida ín

Uma comédia de enganos

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Queria a todo o custo tirá-la dos seus pensamentos. Tinha sido infetado, era assim que pensava. O seu desejo, a atração sexual, tinha infetado a sua mente e agora quase não conseguia deixar de pensar nela. Em Medley. Como essa música que não nos larga, que trauteamos instintivamente, maquinalmente, sem o intencionarmos. Não conseguia tirá-la da cabeça e, por isso, precisava de a substituir por outra coisa, por uma outra obsessão. Então, primeiro, experimentou beber até ficar de rastos. E passava dois ou três dias com a cabeça a latejar não se conseguindo concentrar no trabalho. Mas, passada a ressaca, restaurada a vitalidade do corpo, o vírus de Medley voltava a atacá-lo, por vezes ainda com maior intensidade. Enfim, não resultava. Sentia-se de algum modo doente, em vão procurava justificar toda aquela atração por alguém com quem tinha tão pouco em comum. Era verdadeiramente irrazoável e insensato. O que é certo é que por mais absurda que fosse toda a situação era bem real e estava a c

Morte e cobardia

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  Desejava com todas as suas forças morrer, mas não tinha coragem de se matar. Aliás, se algo o distinguia era a cobardia. Uma cobardia mal resolvida que o amesquinhava pessoalmente. Facto que apenas se exacerbava diante da questão do suicídio. Então, nos períodos de maior angústia e melancolia, quando o sentimento de nojo de si mesmo e de fracasso era levado ao extremo, punha-se como que a rezar para que a morte o levasse durante o sono. Cobarde como era evidentemente clamava por uma morte suave e indolor. Pedia sem endereçar a sua prece a algo definido, a um nome ou a uma entidade (mais concreta ou difusa). Fosse Deus, a natureza, o acaso, o que quer que seja, desejava apenas que o matasse durante a noite. Estava farto de viver, de pontapear os dias para diante. A rotina autodestruía-o. O que agudizava o seu tormento era a falta de coragem. Gostava de olhar do último andar do centro comercial para baixo, como se o seduzisse a altura vertiginosa qual canto de sereia. Pensar no que o i