Testemunho
Ainda nem tinha falecido e com o
passar do tempo sentia-se cada vez mais como um ser mitológico. Vivia numa
espécie de limbo ontológico. Era e não era. De tal forma enredado que estava
nas suas rotinas que a sua personalidade não se distinguia da de um adereço,
mesmo que em movimento, um figurino nesse palco sem margens que um demiurgo
prepara para seu gozo pessoal, para seu desfrutar olímpico. E à medida que os
dias se extinguiam no calendário também as fronteiras entre o real e o sonho se
dissipavam. Tudo se tornava irreal, fantasmagórico, espectral. Robert assistia,
já sem pavor nem ponta de espanto, ao modo como paulatinamente se invisibilizava.
Como a realidade se lhe escapava tornando-se granulosa, por vezes gasosa. A
morte cercava-o por toda a parte tornando a vida num seu simulacro, num
sinistro jogo seu. Robert sentia-se como parte involuntária dessa farsa cósmica
que requeria, nada menos, do que a mobilização de todos os poderes do universo,
da criação inteira. Sentia que desaparecia, que pouco a pouco se esfumava, tal como
a paisagem que o rodeava, com todos os seus hábitos, apetrechos e rostos,
conhecidos e desconhecidos, com os quais partilhava a inefável contingência das
coisas e o destino dos objetos aleatórios e destituídos de vontade. A única substância
que lhe garantia ainda alguma aderência ao mundo era o labirinto que os humanos
tinham inventado para não desesperarem, para não chegarem a conclusões
derradeiras. Compreendia agora em toda a sua dolorosa lucidez, nessa vertigem
de absurdidade, o que afinal Platão queria dizer com a filosofia é um treino de
morrer e de estar morto. O preço da sabedoria era pago com a trágica
constatação do seu desvanecimento permanente; de que já era inteiramente outro,
isto é, alguém que já não existia, mas que entretanto deixava também um ténue
rastro. Mas mesmo esse vestígio estava condenado a desaparecer, como as pegadas
nas dunas apagadas pelo vento. Somos um testemunho condenado ao silêncio.
Comentários
Enviar um comentário