A ideologia como confissão da impotência política



Talvez a influência do pensamento gramsciano em torno da hegemonia seja o suficientemente ampla e penetrante para que a esquerda em sentido lato tome por central a influência dos “aparelhos ideológicos do Estado” na sociedade civil; a ponto de muitas vezes parecer que troca a luta no plano estrutural pelo plano superestrutural – numa inversão clara e pérfida da filosofia marxista. Em especial em tratando-se dos meios de comunicação de massa. A disputa do tempo de antena é permanente e assumido como incontornável, de tal forma que o PCP faz da sua menor presença nestes meios mais uma oportunidade para o seu ritual de vitimização. E não se trata de relativizar ou de subestimar a influência da cultura mediática – exposta como ela está aos interesses dominantes – na formação da opinião e, principalmente, na formatação das mentes. O problema está antes a montante, nomeadamente na conceção da sociedade como uma tabula rasa na qual se vai inscrever, pela insistência e eficácia, a ideologia. A nossa sociedade parece depender da ideologia para se constituir enquanto tal. E se esta ilude o povo trabalhador é porque o povo trabalhador é naturalmente ingénuo, acrítico e permeável à influência dos meios mais poderosos de persuasão e propaganda, estando à mercê do canto malévolo da burguesia e seu mundo. Há então uma espécie de infantilização da classe trabalhadora rebaixada à condição de fantoche dos interesses hegemónicos; inteiramente maneável e inteiramente corrompida. Mas o que a importância concedida à luta ideológica reflete é antes de mais o corte que a ideologia vem realizar entre o Estado e a sociedade civil; entre a dominação e os dominados. Se os trabalhadores precisam da ideologia para adquirirem consciência da sua condição de explorados é porque nalgum ponto da história a perderam, é porque tal consciência deixou de ser para estes uma evidência. O trabalho do Partido é então um autêntico trabalho de anamnese que reflete a relação pedagogo/iniciado. Cabe ao Partido, à vanguarda operária, levar o seu povo até à verdade sobre si. Mas a pergunta fundamental, que sempre lateja, é sistematicamente olvidada: como é que o proletariado perdeu a verdade sobre si a ponto de precisar da ideologia (comunista!) – que é o contrário da verdade -- que a recorde? E assim sendo a ideologia não é mais do que a confissão da nossa impotência política, da distância entre a nossa existência terrena, civil, e a comunidade que pretensamente desejamos, a terra sagrada. O coração da ideologia, o seu segredo, não está tanto na distorção da realidade que provoca (o mesmo poderíamos dizer sobre os mitos), quanto na realização permanente da distância entre a nossa potência abstrata enquanto seres livre e iguais e a nossa impotência enquanto membros ativos da sociedade da desigualdade. Se somos em grande medida seres ideológicos, condicionados por esta, é porque somos seres impotentes que não conseguem realizar (não realizando…) a sua liberdade e igualdade radicais senão pela mediação de instituições que tutelam as ideologias tais como os partidos políticos. A ideologia é a confissão não apenas de uma mentira como do nosso fracasso enquanto cidadãos livres e iguais na sociedade da desigualdade. 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O salto de fé exigido ao católico pelo marxista

Concentração e distração: contradições da nossa época