Infância

 

Pensava aturadamente sobre o conceito de consentimento quando, sem dar por isso, se viu, pequena criança, sem conseguir precisar que idade que então teria, a percorrer novamente o corredor que dava para o quarto do zelador. Um ser verdadeiramente asqueroso em todos os aspetos. Sempre envolvido numa nuvem de fumo, com a ponta do cigarro a queimar-lhe os dedos das mãos, as mãos rudes, a cara fuzilada, cravejada de rugas e de poros abertos. A cabeça tacanha, o pescoço sumido, o corpo atarracado. A boca pequena de onde desdobravam uns pequenos lábios nojentos. Aqueles olhinhos pequenos e demoníacos, escuros, quase invisíveis, o hálito repelente e a cabeça quase calva. Robert, abandonado à sua sorte, a mãe novamente a trabalhar sem se poder prever a que horas voltaria, um silêncio quase sepulcral a percorrer as paredes da residencial, e a porta do zelador semiaberta como se chamasse pelo seu nome: Robert, Robert. Pensava o menino Robert que talvez fosse melhor despachar logo o suplício ou talvez pensasse antes que mais valia mergulhar de cabeça no jogo; que o mundo dos adultos era assim, repleto de códigos, subtilezas e depravações, e que valia mais alinhar logo do que aprofundar indefinidamente o seu sofrimento e confusão. Hoje, isto é, naquele dia que então recordava, tomaria a iniciativa; extravasaria a monotonia da relação sexual, a violação sistemática e ininterrupta, para propor fantasias, quebras de tabus, novos posicionamentos e possibilidades. Ao menos hoje, isto é, o dia de que se lembrava, dominaria e não seria dominado! Quem sabe assim até se pudesse divertir. O homem, dos seus quarenta, era mesmo balofo e o seu sexo nojento, malcheiroso, impregnado de urina. Perguntava-se hoje, certamente estupefato mas já não trucidado por estas e outras recordações, como tinha permitido que as coisas tivessem chegado àquele ponto. É claro que pensou na vingança, em matar seu amante, perdão, violador. Chegou a cruzar-se com ele muitas décadas depois de anos de conspurcação, crime e perversidade, mas não foi capaz de mover uma palha contra aquele ser hediondo que agora carregava, como um vulgar mendigo, resmas de cartões. E de que lhe valeria esmagar aquele verme tão indistinto e medíocre? Não sabia se ele o tinha reconhecido e isso também não importava agora. Com o tempo aprendera a lidar com esse passado tão silenciado e laboriosamente reprimido. Ou talvez não tivesse aprendido a lidar. O que é certo é que o desejo de vingança lhe tinha passado, até porque era inútil, nada redimiria as cores deturpadas da sua infância, nem nada havia a restituir, o que tinha passado persegui-lo-ia para toda a vida, nada a fazer senão lidar.

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