Um coração ardente

 


Medley estava especialmente triste, tão triste que o mundo inteiro se prostrava diante daqueles olhos azuis prestes a colapsar. Robert, meio confrangido mas com o peito cheio de comiseração, procurava as palavras certas para a confortar, mas não existiam as palavras certas perante quem se perguntava qual a razão para continuar a viver, a empurrar a vida com os fármacos e a esperança de aparecer alguém disposto a ouvi-la, pelo menos por um dia, por uma hora, por uns minutos. E sabendo da sensação de abandono a que Medley, com os seus imponentes oitenta e nove anos, se sentia votada, perguntou-lhe sobre a família. A filha estava em França fazia mais de quarenta anos; a neta vivia perto mas trabalhava numa fábrica e poucas vezes arranjava tempo, e talvez disposição, para visitar a avó; já o neto… O neto era o grande amor da sua vida. Estava por Lisboa a tentar sobreviver às rendas incomportáveis, à vida caótica dos transportes públicos, a procurar adaptar-se a uma realidade inimiga das suas expetativas e do seu investimento. Contava Medley que o rapaz tinha um talento enorme para o desenho, que inclusivamente tinha feito formação académica nisso, mas que era muito difícil se safar nesse ofício. Os quadros não vendiam, então chegava a oferecer as suas obras, a expor a troco de nada sem vender nada. Mas nem isso o fez demover da sua paixão e do seu génio, e Medley, no seu passo vagaroso, quase de tartaruga, foi buscar umas t-shirts estampadas com desenhos do neto. O neto vendia roupa com desenhos seus numa engenhosa tentativa de superar a frustração de não conseguir fazer vida com a sua arte. E eram desenhos de facto finos, exímios e minuciosos como as peças de filigrana, algo esotéricos e sem dúvida arrojados. E eram essas t-shirts de fundo preto que devolviam ainda o sorriso e o orgulho à analfabeta Medley. Na viagem de regresso Robert pôs-se a pensar no peso daquela solidão insuportável que podia muito bem vir a ser a sua, no abandono a que as gentes do interior recôndito do país eram votadas, nas suas depressões permanentes e insuperáveis, nesses homens e mulheres que pareciam andar aos tombos pela cidade, desligados de tudo e de todos, desenraizados da alegria e do prazer de viver, incapazes de ultrapassar os seus traumas, de deixarem de andar à bulha com os seus fantasmas. Pensava em tudo isso e não conseguia deixar de concluir que algo estava muito mal na sociedade. Que se não era possível salvar toda a gente exigia-se pelo menos, em nome dos valores da tão propalada humanidade, o nosso esforço, o nosso compromisso.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O salto de fé exigido ao católico pelo marxista

Concentração e distração: contradições da nossa época

A ideologia como confissão da impotência política